sábado, 28 de agosto de 2010

Portas




É uma mania do homem moderno, é uma praga e embora lastimável: sempre achamos que todos os nossos defeitos podem ser justificados de alguma maneira. Se tivermos alguma mania, qualquer espécie de idiossincrasia ou falha de caráter, tudo, tudo mesmo, qualquer deslize moral, pessoal ou social pode ser relevado se tiver uma causa em alguma razão considerada muito forte, forte ao ponto de cometermos "erros" em decorrência dela. 

Incutiram nas nossas cabeças que tudo vem de um trauma, em geral, um trauma que adquirimos por algum episódio que aconteceu quando éramos crianças. É uma velha mania isto de querermos nos justificar por tudo aquilo que fazemos, sobretudo, o que fazemos de ruim, questionável e condenável em qualquer instância.  Não queremos ser condenados,  muito menos sermos condenados sem ao menos termos as nossas razões pra nos justificarmos. 

Criamos pretextos para nós mesmos.

Somos levados a acreditar que devemos ser o herói. Esse desejo de querer ser sempre o cara inabalável, inquestionável e soberano, seqüela a gente e tem gente que a passa a vida inteira sequelado, pedindo desculpas pelos seus "defeitos" até pra própria sombra. Assumir a postura do anti-herói não ajuda muito, embora, em algum momento da vida, a gente supõe que essa vai ser a melhor solução. Bobagem.

Minha mãe tem uma mania terrível a respeito das portas.

A verdade é que minha mãe tem manias terríveis e isto não passaria de uma normalidade se eu não fosse sua filha, além, daquilo que eu considero o agravante: dividir o mesmo teto com ela, sendo cúmplice de todas as coisas que ela faz. Fica difícil achar que tudo está dentro dos conformes quando se tem de viver cercado por delimitações de autoria de uma outra pessoa, particularmente quando esta outra pessoa é sua mãe - não precisaria dizer que este é o meu caso.  

Bom, as portas, acontece o seguinte com as portas: minha mãe tem verdadeiro pavor de portas fechadas. Já passei muito tempo da minha vida tentando entender o porquê. Primeiro pensei num fator banal, depois tentei encontrar respostas em alguma razão dentro do campo da psicologia (ou sei lá que outro campo abarca as paranóias humanas),  resvalando, é claro, na infância de Luisa. 

O fator banal: minha família é composta por mulheres, temos, claro, os progenitores, mas as mulheres são a maioria e é de mulheres que se forma a espinha dorsal disto que eu compreendo e entendo como “minha família”. Então, eu imagino que, na cabeça de minha mãe, não há necessidade de que se fechem as portas numa casa onde nada precisa ser escondido, em tese. 

Minha mãe faz tudo com a porta aberta, inclusive ir ao banheiro, por exemplo. 

O fator psicológico, (ou a válvula de escape pras loucuras da gente): suponho que alguma coisa de terrível aconteceu com Luisa quando ela era criança - ou mais jovem, que seja. Algo deve ter sido escondido dela, algum segredo sobre alguma coisa brutal, não sei. O que eu sei é que ela não deve ter reagido bem a isto e hoje acha que todos estão querendo esconder alguma coisa dela, e é por essa razão que faz questão de que todas em casa tenhamos as portas sempre escancaras. Porta fechada é sinônimo de mentira e falcatrua. 

Isso tudo é só suposição, evidentemente. Esse assunto nunca foi tratado de maneira curiosa. Sempre foi uma mania da minha mãe, nada além disso, e como todas as outras coisas que ela faz, inquestionável. Pra exasperação de Dona Luisa, eu nasci com o Yin do Yang dela. Me aborreço com portas abertas, e sempre carrego tudo pelo lado de dentro, com as portas bem fechadas. 

Deve ser por isso que minha mãe parece tão bem resolvida, o inverso de mim.

4 comentários:

  1. ai! nesses blogs, o espaço do comentário, a nota de rodapé, o espaço aberto para o leitor...isso tudo é um abrir de porta danado, ainda mais por ter sido aberta por quem primeiro se abriu.
    mas vamos lá.
    o que me atingiu ou implodiu (quiçá)), há alguns meses:

    "Fica difícil achar que tudo está dentro dos conformes quando se tem de viver cercado por delimitações de autoria de uma outra pessoa, particularmente quando esta outra pessoa é sua mãe - não precisaria dizer que este é o meu caso."

    o que me atingiu agora, vindo de quem abriu a porta (mais pela audácia de dizer do que pelo que foi dito, já que é algo não escondido, pelo contrário, é afirmado pelos seus gestos):

    "Me aborreço com portas abertas, e sempre carrego tudo pelo lado de dentro, com as portas bem fechadas."

    Nova perturbação de sempre: consigo "entrar" nas portas que me abrem (blogs e coisas do gênero). Apesar de possuir um blog (e um orkut, um face book, um flickr, um last fm, e mais um bando de lá-lá-lá, lá-lá-lá), não consigo (ou, talvez, reluto) em compartilhar meus próprios pensamentos, por meio de palavras e ads portas que anseio abrir.

    e o paradoxo de estar exposto e de ter suas próprias portas ainda tão fechadas não se resolveu ainda.

    acho que vou postar isso lá, na fresta da porta, pra ver se mais tarde isso volta. refluxo ou idéias ruminantes.

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  2. Lorena, minha querida, não precisamos resolver os nossos paradoxos. Eles não existem pra serem solucionados.

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  3. Obrigada, Maria. Perceba que negar meu próprio paradoxo já é um paradoxo diante de tudo que tenho ousado suscitar nos últimos tempos. Ufa, que alívio!

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Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




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