domingo, 28 de novembro de 2010

Elos


Sempre ouvi das minhas irmãs que minha mãe era uma mulher vaidosa no passado e que isto era uma coisa acentuada. Paulatinamente, ela foi deixando-se o mais natural possível, acho que, na realidade, ela passou a achar um desperdício de tempo o cultivo de certos hábitos. Não usa brincos, não usa perfume, não usa salto alto, não se interessa por maquiagem, tem os cabelos curtos. Mas, antes, Luisa sempre gostava de manter-se impecavelmente maquiada, possuía cremes caros e os cabelos maiores, usava algumas poucas jóias. Lembro quando mamãe usava ainda muitos anéis nas mãos. Até que, em algum momento que estava perdido no espaço, ela deixou de usá-los. Isto não me foi motivo de espanto porque eu sempre soube que ela carregava consigo o hábito de abandonar a materialidade.  


Ás vezes, nosso coração sabe de coisas que não sabemos. E quando falo em coração aqui, não quero relacioná-lo diretamente com questões amorosas e afetivas, mas faço, antes de mais nada, uma relação dele com o espírito. O coração é a maior materialização da alma que temos e ninguém me tira isso da cabeça. Quem seria tolo o bastante pra afirmar que aquele aperto no peito  é apenas uma contração muscular causada por uma reação cerebral?  

Parecia que eu já sabia disso, mas entrei em êxtase quando tive como certo aquilo que antes julgava apenas como produto natural do caminho de Luisa.  Tio Nizo estava em nossa casa num domingo de tarde e conversávamos sobre toda essa coisa complexa que é você  ter nas mãos a responsabilidade de educar uma pessoa.  No fluir da conversa, elogiamos comportamentos e desprezamos outros. E minha mãe começou a dizer que, ao contrário de como havia sido com minhas irmãs, nunca havia me dado uma surra, exceto uma vez: por uma razão que não lembrávamos qual , eu era criança ainda e ela estava irritada. Morávamos na nossa saudosa casa da Kalilândia. Ela levantou furiosa da cadeira e aplicou, com alguma força, uns tapas em mim. Acontece que ela estava muito nervosa, provavelmente porque eu devia ter respondido a ela de maneira grosseira, coisa que é inadmissível para Luisa.  Avançou sobre mim e saiu esbofeteando o que via (ou, melhor seria, o que não via) pela frente, foram quatro ou cinco tapas disciplinatórios. O lastimável é que, nesta época, ela usava aqueles vários anéis na mão e, num desses bofetões, um anel atingiu um dos meus olhos que inchou imediatamente. Comecei a choramingar e reclamar que meu olho estava doendo.  Quando ela viu o que havia acontecido, começou a chorar também, me colocou no colo – coisa que me marcou profundamente porque, embora ainda criança, não havia mais esse hábito entre nós – e me pediu desculpas intermináveis: ela contava tudo isso ao meu tio. Até então, nenhuma novidade. Mas, mesmo assim, me encontrava muito emocionada por ela ter se lembrado disto. Nunca antes ela havia tocado no assunto comigo ou em minha presença. Mas foi o que aconteceu a seguir que me fez ficar sem voz. Quando ela terminou de relatar isto, acrescentou: “E é por isso que nunca mais eu coloquei um anel no meu dedo”. 

Comecei a pensar então se, por trás de todas as outras coisas que ela havia deixado de cultivar, teriam razões como esta.

E também sobre como a história destes anéis - assim como os de Saturno - carregava dentro de si tanto gelo, poeira e material rochoso.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Âmago


Parece até ser expansividade, e eu asseguro que, em certa medida, o é. Mas o que me é mais marcante no comportamento de minha mãe é a maneira que ela encontra pra exercer seus mistérios. Acontece muito de, num domingo qualquer, ela decidir que é chegado o momento de me contar alguma história sobre a sua vida, algum acontecimento, algum fato que, na maioria das vezes é incrível e inacreditável.

Me lembro que num dia desses ela começou a me contar a história da minha avó. Ela se chamava Hermínia e foi uma mulher à frente do seu tempo. Sempre havia achado estranho o fato de minha mãe ser filha única; como vocês sabem, a pelo menos cinqüenta anos atrás não havia tantos métodos contraceptivos, e as famílias quase que não eram compostas por filhos únicos. Isso só devia ocorrer em casos patológicos, quando a progenitora não poderia mais ter outros filhos ou em casos especiais e curiosos, como é o caso da minha avó. Lá na Espanha as pessoas são bem cristãs e tradicionalistas, mas o que vou lhes contar a seguir não traz em si nenhum traço de recato ou moralismo. Minha mãe é filha única pelo fato de que numa Espanha do passado, muito mais conservadora que a Espanha atual, a minha avó desafiou os dogmas de qualquer espécie e engravidou de um homem por quem havia se apaixonado, meu avô. Eles não se casaram, tampouco ficaram juntos. Meu avô foi preso na Segunda Guerra Mundial por ser esquerdista. Ao ser liberado, foi morar na França, onde conheceu uma outra mulher e se casou com ela, depois de ter enviado cartas e mais cartas pedindo pra que minha avó se mudasse para lá e ter recebido sempre  recusas de Hermínia que, com medo, se negava a deixar a sua terra . Quando minha mãe já era uma jovenzinha de seus vinte e poucos anos, foi fazer uma visita às terras francesas para, finalmente, conhecer o seu pai, pessoa com quem só trocava cartas e fotos, até então.

Minha avó, mãe solteira, nunca casou – por preconceito e discriminação da sociedade da época, suponho, embora minha mãe negue este fato: diz que foi porque não era de sua vontade casar-se com alguém que não fosse o seu eterno amado. Foi obrigada a passar grande parte dos seus dias longe de minha mãe porque tinha que trabalhar para lhe dar de comer. Luisa foi criada, praticamente, por sua avó, tendo como irmãs duas primas que, por alguma razão, conviveram com ela por muito tempo. E assim começou a saga da família Rodriguez. Nenhuma mulher descendente de Hermínia Rodriguez Abalde se submeteu aos cuidados monetários de um homem qualquer. E, mais que isso, nunca nos submetemos ou nos submeteremos em nenhuma estância. Talvez um dos fatos mais significativos seja o de que minha mãe não possua o sobrenome do meu pai e que por uma espécie de estigma, de carma e inevitabilidade, teve quatro filhas mulheres, das quais eu sou a caçula.  Para alargar ainda mais o teor epopéico desta história, deixo-lhes a informação de que é em solo feirense que está enterrada Hermínia. Como ela veio parar aqui? Mistérios que só Dona Luisa poderá nos confidenciar, num dia qualquer, sem pretensão e sem razão.

sábado, 2 de outubro de 2010

Espinhos


Não diria que é exatamente uma mania. Chamaria isto de bom gosto e até mesmo de uma elevação de espírito resultante em uma sensibilidade aflorada. Você gostar de flores, conseguir se encantar com elas, se entreter com as surpresas do reino vegetal: minha mãe. Minha mãe considera que as flores e todas as plantas aqui de casa são como membros da família, ao passo que quando nos mudamos da Kalilândia para o centro da cidade – minha mãe já tinha trinta anos naquele mesmo endereço – aquela fauna gigantesca nos acompanhou, nossa antiga casa era muito grande, afinal. 

Mamãe sempre ocupava (e ainda ocupa) todos os espaços com plantas, sobretudo as naturais, havia ainda umas artificiais espalhadas pelos cômodos, nas janelas e corredores. O desafio era fazer com que todos aqueles seres vegetais dessem dentro de um apartamento. Eu e Luisa moramos num lugar confortável, grande pros moldes do que se vem produzindo hoje na arquitetura da cidade quando falamos em prédios, em tempos de coisas tão compactas, temos o privilégio de morar em um lugar ordenado verticalmente mas com um certo espaço, de modo que quase todas as plantas vieram conosco na mudança. Infelizmente, havia uma escultura ornada com flores muito bonita na nossa antiga casa que teve de ser passada adiante, mamãe deu pra alguém.

O domingo será pra sempre o nosso dia, o dia meu e de minha mãe, é quando ocorrem os nossos maiores encontros, as nossas maiores comunhões, deve ser por isso que sempre achei que acertaram quando, por alguma razão, deram um domingo do ano como o dia das mães. Numa dessas manhãs de domingo minha mãe me chamou até a sala, prontamente a atendi.

 – Oi, mãe. Estou aqui. 
– Olha essa planta aqui. Parece que não vai brotar nunca uma flor nela.

Quando meus olhos pousaram sobre o vaso que ela indicava com o dedo, pude perceber que havia alguma coisa errada de fato.

-Mãe, esta flor é de plástico.


*


E é por isso também que me emociona tanto o verso “ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos”, porque a palavra fibra conota sempre algo de natural, de vegetal. E penso em minha mãe que com tanto afinco cuida de mim, desdobrando, abrindo, desvendando, sempre, fibra por fibra.


sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ardil


Nunca duvidei daquela máxima que diz que não importa o que exatamente você fala, mas sim, a maneira que o faz. Acho que é uma coisa extremamente clara e sensata, embora, na maioria dos casos, eu não consiga me portar devidamente, acabo sempre por falar as coisas mais bobas da pior maneira possível, fazendo tempestades em míseros copos de cafezinho. Creiam vocês, não sei como adquiri características tão distintas da minha mãe. Estava hoje falando com algumas pessoas sobre carma, sem querer utilizar o termo/conceito como uma justificativa pras coisas que acontecem e sem tratá-lo como um sinônimo pra destino - talvez exista alguma ligação.  As nossas relações são marcadas por uma grande porção de carmas, relações familiares, sobretudo. A minha família e eu, em especial, temos um motivo muito forte pra potencializarmos essa característica, me permitiria usar a palavra destino sem recear estar fazendo apelos místicos. Lamento que nenhum de vocês saiba ou saberá do que trato aqui, só lhes digo que é impossível olhar pra minha família e não pensar a respeito do porquê de estarmos juntos.

Minha mãe não é brasileira, ela nasceu na cidade de Vigo na Galícia – Espanha. Nunca conversei com ela sobre seu processo de aquisição do português, e ainda assim poderia afirmar que ela não tenha tido muitas dificuldades, minha mãe lê com muita voracidade e tem uma gama enorme de conhecimentos lexicais - o que me prejudicou um pouco na infância porque não havia uma só palavra que eu perguntasse e ela não soubesse me dizer exatamente o que aquilo queria dizer, isso provocou a ausência do dicionário nas minhas primeiras leituras e uma posterior falta de interesse em consultá-lo, bastava minha mãe estar por perto, e ela sempre estava. Mas aconteceu de hoje eu ser viciada em dicionários, procuro até o significado das palavras conhecidas.  

O fato é que minha mãe sempre chama as pessoas de cretinas, isso causava um pouco de constrangimento pra mim quando ela soltava um “seu cretino” pra um amigo meu que ainda era seu desconhecido.  Mas, depois de um tempo, isso se tornou a coisa mais encantadora que eu poderia encontrar em uma pessoa, me orgulhava poder - depois da crise de risos que os “cretinos” que minha mãe falava causavam nas pessoas que não conheciam esse seu hábito – explicar que esse era um costume de minha mãe e que não era nada pessoal, precisamente. Ela fala cretino em situações específicas, é claro, mas mesmo que falasse em situações aleatórias, continuaria sendo uma peculiaridade sua.

Talvez, ela esteja sendo apenas, de maneira astuciosa, em sua grande naturalidade diante da vida, debochada em relação a nossa mania cansativa de vivermos dissimulando a nossa cretinice diante de todas as coisas.

domingo, 5 de setembro de 2010

Ignorada





Minha família segue muitas convenções. O Natal aqui em casa sempre é celebrado com uma ceia que há anos tem o mesmo cardápio. Fazemos a brincadeira do amigo-secreto que, depois da ceia, é o momento mais esperado da noite. Além da troca de presentes, todos esperamos ansiosamente pra dizermos as coisas que são caladas durante o resto do ano. Tudo aquilo que deixamos de falar por vergonha, por falta de vontade ou por despercebimento, é dito nos cinco minutos de descrição do nosso amigo oculto. Não espero nada além de coisas mal ditas, embora já tenha me surpreendido em muitos casos. Se minha família estrelasse um filme ele seria tragicômico, sem nenhuma sombra de dúvida.


Todos os anos, fico ansiosa pra saber quem falará depois da oração feita antes da ceia, mas, sem muitas surpresas, minha mãe é sempre a escolhida. Eu não tenho nenhuma vontade de falar nesse momento que antecede a ceia e quase nunca me impressionei com o discurso de outras pessoas, mas sempre me emociono com as palavras de minha mãe. Além de todas essas expectativas, nada supera a comoção de se tirar Luisa no amigo-secreto. Minha mãe é a pessoa mais desejada e - embora sem muita razão de ser, porque todos sempre fazem declarações sobre ela durante o ano todo, ao contrário do que acontece com todas as outras pessoas – o sortudo que tira o papel com o seu nome sempre prepara um discurso especial. Uns declamam poemas, outros preparam músicas, procuram bonitos textos para ler, além de regarem todas as homenagens com muitas lágrimas emocionadas e engasgos, motivados por uma agitação contida.


Eu nunca havia tirado minha mãe no amigo-secreto, esperava calmamente pelo ano em que isto aconteceria. Finalmente, no final do ano passado, eu abri o papel e quase choro de emoção só de saber que eu que havia sido a premiada naquele ano. Não estava preocupada com o presente, comprei um livro no dia seguinte ao sorteio. O que me preocupava era o que eu falaria pra descrever Luisa. Optei por fazer uma coisa diferente: humanizaria minha mãe. Já tinha o discurso preparado, eu falaria coisas como: “Todos esquecem que a pessoa que eu tirei é, antes de ser mãe, uma mulher e por isto tem fraquezas, tem frustrações, tem desejos, tem sonhos e tem defeitos. Não deveríamos nos esquecer disto, não deveríamos achar que ela tem de suportar, sem demonstrar suas dores, todas as coisas que acontecem nesta família...”, etc. etc. 


Eu estava nervosa e inquieta naquela noite. Quando, Daniele - uma amiga de minha mãe que sempre passa o Natal com nossa família - se levantou e começou a sua descrição,  eu não podia acreditar no que eu estava ouvindo mas foi o que aconteceu: alguma coisa tinha dado errado e Daniele havia pronunciado em alto e bom som que a pessoa que ela havia tirado era... a minha mãe. Imaginem o estado em que eu fiquei, estava desapontada, decepcionada com aquela brincadeira que havia se transformado numa confusão sem graça. Levantei da cadeira e gritei que quem havia tirado minha mãe tinha sido eu, TINHA SIDO EU! Depois de várias gargalhadas dos presentes, a confusão foi esclarecida. Não vem ao caso o que havia sucedido, mas o que aconteceu em seguida. Mesmo sem nenhuma vontade, eu fui incentivada a falar - todos sabiam que eu também havia preparado coisas bonitas pra dizer naquela ocasião. Meio retraída e já com lágrimas nos olhos eu comecei: “Bom, todos esquecem que minha mãe, antes de ser mãe, é uma mulher...”. Algumas pessoas pareciam chocadas com as minhas palavras e eram visíveis as lágrimas de comoção em mais de dois dos presentes.  Mas mal eu havia terminada a primeira afirmação, o celular de uma irmã minha tocou e ela, indiscretamente e indelicadamente,   atendeu e começou a estabelecer um diálogo ali mesmo, entre lágrimas,  abalos e decepções. Esta irmã minha fala muito alto, eu fui obrigada a calar-me e sem dizer mais nada me retirar da sala e me dirigir pra o meu quarto, no qual fiquei trancada aos prantos até que uma outra irmã minha - completamente diferente daquela outra -   viesse me chamar pra integrar novamente o seio familiar durante o resto da noite de Natal.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Servir



Minha mãe é o tipo de pessoa que levou isso de servir primeiro aos outros as últimas conseqüências. Não sei se pela sua formação católica ou se pela sua boa índole, ou por ambas (ou outras) razões.

Um dia eu estava comentando com uma amiga que minha mãe havia ensinado a todas aqui de casa que deveríamos nos colocar sempre por último, até nas coisas mais triviais, como quando, por exemplo, estamos falando no telefone e a pessoa do outro lado da linha pergunta quem está com a gente. Devemos responder: “Estamos aqui Fulano, Beltrano, Sicrano e eu”. Se for servir um café, sua xícara deve ser a última, etc. O eu deve sempre ser colocado por último. Lembro que, quando eu era criança, isto nunca foi imposto, era falado com tanta delicadeza que minha mãe acabava me convencendo pelo excesso de sensatez que eu, mesmo com pouca idade, conseguia entender. Foram ensinamentos budistas estes que eu tive, por certo, embora minha mãe ainda vá à igreja Católica Apostólica Romana todos os sábados – santos ou não, e sobre o grau de ensinamentos budistas sabemos o quão a Igreja está bem, digamos, defasada.

Durante as refeições, não há um prato sequer na mesa que minha mãe não “fiscalize”, pode ser a primeira vez de um amigo meu na nossa casa, não importa de quem é o prato, importa que estando sobre o teto de Luisa, a pessoa tem de comer e tem de comer até ficar satisfeito. Uma das minhas irmãs se incomoda terrivelmente com essa atitude de minha mãe, segundo ela, Luisa fica monitorando o que as pessoas comem ou não, grande engano. Minha mãe não quer saber se você comeu trinta colheres de puro arroz - se esta for a sua real vontade. O que ela quer é que você coma trinta colheres, ou quantas colheres forem necessárias pra que você se sinta bem. Dona Luisa não admite que nenhuma pessoa não se sinta à vontade estando dentro de sua casa e usa todas as artimanhas para que a sua vontade seja feita: ela sabe o momento de falar e o momento de calar, é uma coisa intuitiva, impressionante mesmo. Já vi pessoas que se desconcertam com qualquer desconhecido de tanta timidez que sentem, mas com minha mãe tudo é diferente, passam muito tempo conversando sobre quaisquer coisas. Desconheço a existência de uma só pessoa que não tenha gostado da minha mãe, e isto é curioso se você levar em consideração que ela é uma comerciante. Comerciantes em Feira de Santana vocês sabem como são. E se tem uma coisa que minha mãe não é, essa coisa é egoísta. 

sábado, 28 de agosto de 2010

Portas




É uma mania do homem moderno, é uma praga e embora lastimável: sempre achamos que todos os nossos defeitos podem ser justificados de alguma maneira. Se tivermos alguma mania, qualquer espécie de idiossincrasia ou falha de caráter, tudo, tudo mesmo, qualquer deslize moral, pessoal ou social pode ser relevado se tiver uma causa em alguma razão considerada muito forte, forte ao ponto de cometermos "erros" em decorrência dela. 

Incutiram nas nossas cabeças que tudo vem de um trauma, em geral, um trauma que adquirimos por algum episódio que aconteceu quando éramos crianças. É uma velha mania isto de querermos nos justificar por tudo aquilo que fazemos, sobretudo, o que fazemos de ruim, questionável e condenável em qualquer instância.  Não queremos ser condenados,  muito menos sermos condenados sem ao menos termos as nossas razões pra nos justificarmos. 

Criamos pretextos para nós mesmos.

Somos levados a acreditar que devemos ser o herói. Esse desejo de querer ser sempre o cara inabalável, inquestionável e soberano, seqüela a gente e tem gente que a passa a vida inteira sequelado, pedindo desculpas pelos seus "defeitos" até pra própria sombra. Assumir a postura do anti-herói não ajuda muito, embora, em algum momento da vida, a gente supõe que essa vai ser a melhor solução. Bobagem.

Minha mãe tem uma mania terrível a respeito das portas.

A verdade é que minha mãe tem manias terríveis e isto não passaria de uma normalidade se eu não fosse sua filha, além, daquilo que eu considero o agravante: dividir o mesmo teto com ela, sendo cúmplice de todas as coisas que ela faz. Fica difícil achar que tudo está dentro dos conformes quando se tem de viver cercado por delimitações de autoria de uma outra pessoa, particularmente quando esta outra pessoa é sua mãe - não precisaria dizer que este é o meu caso.  

Bom, as portas, acontece o seguinte com as portas: minha mãe tem verdadeiro pavor de portas fechadas. Já passei muito tempo da minha vida tentando entender o porquê. Primeiro pensei num fator banal, depois tentei encontrar respostas em alguma razão dentro do campo da psicologia (ou sei lá que outro campo abarca as paranóias humanas),  resvalando, é claro, na infância de Luisa. 

O fator banal: minha família é composta por mulheres, temos, claro, os progenitores, mas as mulheres são a maioria e é de mulheres que se forma a espinha dorsal disto que eu compreendo e entendo como “minha família”. Então, eu imagino que, na cabeça de minha mãe, não há necessidade de que se fechem as portas numa casa onde nada precisa ser escondido, em tese. 

Minha mãe faz tudo com a porta aberta, inclusive ir ao banheiro, por exemplo. 

O fator psicológico, (ou a válvula de escape pras loucuras da gente): suponho que alguma coisa de terrível aconteceu com Luisa quando ela era criança - ou mais jovem, que seja. Algo deve ter sido escondido dela, algum segredo sobre alguma coisa brutal, não sei. O que eu sei é que ela não deve ter reagido bem a isto e hoje acha que todos estão querendo esconder alguma coisa dela, e é por essa razão que faz questão de que todas em casa tenhamos as portas sempre escancaras. Porta fechada é sinônimo de mentira e falcatrua. 

Isso tudo é só suposição, evidentemente. Esse assunto nunca foi tratado de maneira curiosa. Sempre foi uma mania da minha mãe, nada além disso, e como todas as outras coisas que ela faz, inquestionável. Pra exasperação de Dona Luisa, eu nasci com o Yin do Yang dela. Me aborreço com portas abertas, e sempre carrego tudo pelo lado de dentro, com as portas bem fechadas. 

Deve ser por isso que minha mãe parece tão bem resolvida, o inverso de mim.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Porquê


Minha mãe cultiva flores como se colhesse mistérios.
E eu que poderia talvez plantá-los, passo a vida a desvendar
o que o coração desta mulher trás
por dentro das veias escancaradas

Como num domingo, cansado por vida,
aquela flor que ela cuidava desabrochou e ela disse:
Meu deus, que coisa impressionante

Pensei: Como não querer achar o que move os fascínios
de quem se espanta com a beleza das flores?


 23 de maio de 2010

domingo, 22 de agosto de 2010

Descomedimento

O maior símbolo da velhice é a caduquice. Todo mundo tem medo de caducar, de ficar sem saber o que está dizendo, sem saber o que está fazendo, e, sobretudo, sem ter consciência disto. Acontece que, deliberadamente, buscamos isto. Bebemos, enchemos a cara, usamos toda espécie de artifícios para fugir da consciência que aparentamos ter normalmente. Pra mim, a pior parte de envelhecer, além de ficar mais perto da morte, é aumentar a intensidade das manias que a gente vai adquirindo na vida. Minha mãe é mestra nisto, Dona Luisa tem setenta e seis anos, mora comigo, sua filha caçula. Ela talvez não dê por isto, mas a cada dia que passa suas manias se acentuam. E nada acontece, como a gente costuma pensar, de um dia pro outro.

Minha mãe sempre foi a pessoa com o maior número de dogmas, caprichos e teimas que eu já conheci. Esbravejava quando me via andando descalça mas, no fundo no fundo, os filhos acabam por educar seus pais, no sentido de que não há educação que possa superar a natureza de uma pessoa. Andar descalço é uma característica da minha natureza, seja lá o que isto insinue. Por mais que minha mãe berrasse, prometesse fazer o diabo comigo, eu nunca deixei esse hábito. Mas como os filhos também são educados pelos pais, acabei por pegar uma de suas manias: só tomo banho de chinelos, sempre, mesmo no banheiro de casa.  A gente não sabe ao certo de onde nasce uma mania. Essa idéia fixa de minha mãe de que as pessoas só podem andar calçadas, em todas as situações, excetuando-se duas ou três ocasiões especiais,  tem um possível porque: os pés de minha mãe são extremamente sensíveis, muito finos mesmo. Só não sei se isto nasceu da sua mania, que acabou por sensibilizá-los demais . Ou se a sua mania nasceu disto.  

Luisa refinou tanto este velho hábito que agora tem dois chinelos, um para o uso normal e o outro só para quando vai tomar banho.

Ruga


Quando somos muito novos, ouvimos uma série de calamidades sobre o que viria a ser a passagem pro outro mundo – o mundo dos adultos. Quando nos tornamos adultos, sobretudo quando somos jovens adultos, ficamos sabendo de uma outra série de passagens e rituais que nos farão mudar para um mundo mais absurdo ainda... mais distante e mais irrealizável mentalmente – o mundo dos idosos. Com certeza, o sentimento de conformismo nos traz alguma espécie de calmaria e nos trai, ao passo que quanto mais velhos ficamos mais nos acostumamos com a idéia de envelhecer. Quando estamos na flor da idade, pensamos que será uma tragédia muito grande ser um velho, alguns dizem que querem morrer antes de chegar à velhice, acabamos por perceber que, mesmo que pareça o extremo contrário agora, não é tão ruim. Outro dia li numa entrevista o Angeli dizendo que o que ele não gosta nesse negócio de estar velho é que ele perdeu um pouco da sua vitalidade. Contou, inclusive, uma história engraçada: ele disse que foi com a esposa a padaria e ela se dirigiu ao balcão pra comprar alguma coisa enquanto ele ficava esperando, sentado numa mesa. Quando ela voltou, ele estava cochilando. Isso é assustador. Perder a vitalidade física, mesmo não possuindo uma das melhores, me dá medo.


Toda espécie de coisas ruins sobre envelhecer, nós escutamos: perda dos dentes, fraqueza nas pernas, problemas na coluna, enfraquecimento na capacidade de visão, perda dos reflexos, impossibilidade de fazer sexo. Quanto a esta última, vi o Cacá Diegues numa entrevista ontem, e ele disse que mesmo com os seus setenta anos não parou de fazer sexo e que desconhece um caso dessa espécie entre seus amigos de mesma idade. Nessa hora a gente fica pensando se ele está falando isso abertamente porque quer acabar com essa farsa de que tudo tende a piorar com a velhice ou se é porque ele, mesmo com seus setenta anos, quer contar alguma espécie de vantagem. Eu sei que ele não tem necessidade nenhuma de contar vantagem sobre as coisas, o cara é um dos mais comemorados cineastas brasileiros, acho que é o que tem maior número de direção de longas no nosso país. Mas pensando bem, a gente sempre tem algum ponto no qual queremos parecer melhor do que realmente somos. Talvez ele esteja mentindo mesmo. Não importa.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




*