terça-feira, 31 de agosto de 2010

Servir



Minha mãe é o tipo de pessoa que levou isso de servir primeiro aos outros as últimas conseqüências. Não sei se pela sua formação católica ou se pela sua boa índole, ou por ambas (ou outras) razões.

Um dia eu estava comentando com uma amiga que minha mãe havia ensinado a todas aqui de casa que deveríamos nos colocar sempre por último, até nas coisas mais triviais, como quando, por exemplo, estamos falando no telefone e a pessoa do outro lado da linha pergunta quem está com a gente. Devemos responder: “Estamos aqui Fulano, Beltrano, Sicrano e eu”. Se for servir um café, sua xícara deve ser a última, etc. O eu deve sempre ser colocado por último. Lembro que, quando eu era criança, isto nunca foi imposto, era falado com tanta delicadeza que minha mãe acabava me convencendo pelo excesso de sensatez que eu, mesmo com pouca idade, conseguia entender. Foram ensinamentos budistas estes que eu tive, por certo, embora minha mãe ainda vá à igreja Católica Apostólica Romana todos os sábados – santos ou não, e sobre o grau de ensinamentos budistas sabemos o quão a Igreja está bem, digamos, defasada.

Durante as refeições, não há um prato sequer na mesa que minha mãe não “fiscalize”, pode ser a primeira vez de um amigo meu na nossa casa, não importa de quem é o prato, importa que estando sobre o teto de Luisa, a pessoa tem de comer e tem de comer até ficar satisfeito. Uma das minhas irmãs se incomoda terrivelmente com essa atitude de minha mãe, segundo ela, Luisa fica monitorando o que as pessoas comem ou não, grande engano. Minha mãe não quer saber se você comeu trinta colheres de puro arroz - se esta for a sua real vontade. O que ela quer é que você coma trinta colheres, ou quantas colheres forem necessárias pra que você se sinta bem. Dona Luisa não admite que nenhuma pessoa não se sinta à vontade estando dentro de sua casa e usa todas as artimanhas para que a sua vontade seja feita: ela sabe o momento de falar e o momento de calar, é uma coisa intuitiva, impressionante mesmo. Já vi pessoas que se desconcertam com qualquer desconhecido de tanta timidez que sentem, mas com minha mãe tudo é diferente, passam muito tempo conversando sobre quaisquer coisas. Desconheço a existência de uma só pessoa que não tenha gostado da minha mãe, e isto é curioso se você levar em consideração que ela é uma comerciante. Comerciantes em Feira de Santana vocês sabem como são. E se tem uma coisa que minha mãe não é, essa coisa é egoísta. 

sábado, 28 de agosto de 2010

Portas




É uma mania do homem moderno, é uma praga e embora lastimável: sempre achamos que todos os nossos defeitos podem ser justificados de alguma maneira. Se tivermos alguma mania, qualquer espécie de idiossincrasia ou falha de caráter, tudo, tudo mesmo, qualquer deslize moral, pessoal ou social pode ser relevado se tiver uma causa em alguma razão considerada muito forte, forte ao ponto de cometermos "erros" em decorrência dela. 

Incutiram nas nossas cabeças que tudo vem de um trauma, em geral, um trauma que adquirimos por algum episódio que aconteceu quando éramos crianças. É uma velha mania isto de querermos nos justificar por tudo aquilo que fazemos, sobretudo, o que fazemos de ruim, questionável e condenável em qualquer instância.  Não queremos ser condenados,  muito menos sermos condenados sem ao menos termos as nossas razões pra nos justificarmos. 

Criamos pretextos para nós mesmos.

Somos levados a acreditar que devemos ser o herói. Esse desejo de querer ser sempre o cara inabalável, inquestionável e soberano, seqüela a gente e tem gente que a passa a vida inteira sequelado, pedindo desculpas pelos seus "defeitos" até pra própria sombra. Assumir a postura do anti-herói não ajuda muito, embora, em algum momento da vida, a gente supõe que essa vai ser a melhor solução. Bobagem.

Minha mãe tem uma mania terrível a respeito das portas.

A verdade é que minha mãe tem manias terríveis e isto não passaria de uma normalidade se eu não fosse sua filha, além, daquilo que eu considero o agravante: dividir o mesmo teto com ela, sendo cúmplice de todas as coisas que ela faz. Fica difícil achar que tudo está dentro dos conformes quando se tem de viver cercado por delimitações de autoria de uma outra pessoa, particularmente quando esta outra pessoa é sua mãe - não precisaria dizer que este é o meu caso.  

Bom, as portas, acontece o seguinte com as portas: minha mãe tem verdadeiro pavor de portas fechadas. Já passei muito tempo da minha vida tentando entender o porquê. Primeiro pensei num fator banal, depois tentei encontrar respostas em alguma razão dentro do campo da psicologia (ou sei lá que outro campo abarca as paranóias humanas),  resvalando, é claro, na infância de Luisa. 

O fator banal: minha família é composta por mulheres, temos, claro, os progenitores, mas as mulheres são a maioria e é de mulheres que se forma a espinha dorsal disto que eu compreendo e entendo como “minha família”. Então, eu imagino que, na cabeça de minha mãe, não há necessidade de que se fechem as portas numa casa onde nada precisa ser escondido, em tese. 

Minha mãe faz tudo com a porta aberta, inclusive ir ao banheiro, por exemplo. 

O fator psicológico, (ou a válvula de escape pras loucuras da gente): suponho que alguma coisa de terrível aconteceu com Luisa quando ela era criança - ou mais jovem, que seja. Algo deve ter sido escondido dela, algum segredo sobre alguma coisa brutal, não sei. O que eu sei é que ela não deve ter reagido bem a isto e hoje acha que todos estão querendo esconder alguma coisa dela, e é por essa razão que faz questão de que todas em casa tenhamos as portas sempre escancaras. Porta fechada é sinônimo de mentira e falcatrua. 

Isso tudo é só suposição, evidentemente. Esse assunto nunca foi tratado de maneira curiosa. Sempre foi uma mania da minha mãe, nada além disso, e como todas as outras coisas que ela faz, inquestionável. Pra exasperação de Dona Luisa, eu nasci com o Yin do Yang dela. Me aborreço com portas abertas, e sempre carrego tudo pelo lado de dentro, com as portas bem fechadas. 

Deve ser por isso que minha mãe parece tão bem resolvida, o inverso de mim.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Porquê


Minha mãe cultiva flores como se colhesse mistérios.
E eu que poderia talvez plantá-los, passo a vida a desvendar
o que o coração desta mulher trás
por dentro das veias escancaradas

Como num domingo, cansado por vida,
aquela flor que ela cuidava desabrochou e ela disse:
Meu deus, que coisa impressionante

Pensei: Como não querer achar o que move os fascínios
de quem se espanta com a beleza das flores?


 23 de maio de 2010

domingo, 22 de agosto de 2010

Descomedimento

O maior símbolo da velhice é a caduquice. Todo mundo tem medo de caducar, de ficar sem saber o que está dizendo, sem saber o que está fazendo, e, sobretudo, sem ter consciência disto. Acontece que, deliberadamente, buscamos isto. Bebemos, enchemos a cara, usamos toda espécie de artifícios para fugir da consciência que aparentamos ter normalmente. Pra mim, a pior parte de envelhecer, além de ficar mais perto da morte, é aumentar a intensidade das manias que a gente vai adquirindo na vida. Minha mãe é mestra nisto, Dona Luisa tem setenta e seis anos, mora comigo, sua filha caçula. Ela talvez não dê por isto, mas a cada dia que passa suas manias se acentuam. E nada acontece, como a gente costuma pensar, de um dia pro outro.

Minha mãe sempre foi a pessoa com o maior número de dogmas, caprichos e teimas que eu já conheci. Esbravejava quando me via andando descalça mas, no fundo no fundo, os filhos acabam por educar seus pais, no sentido de que não há educação que possa superar a natureza de uma pessoa. Andar descalço é uma característica da minha natureza, seja lá o que isto insinue. Por mais que minha mãe berrasse, prometesse fazer o diabo comigo, eu nunca deixei esse hábito. Mas como os filhos também são educados pelos pais, acabei por pegar uma de suas manias: só tomo banho de chinelos, sempre, mesmo no banheiro de casa.  A gente não sabe ao certo de onde nasce uma mania. Essa idéia fixa de minha mãe de que as pessoas só podem andar calçadas, em todas as situações, excetuando-se duas ou três ocasiões especiais,  tem um possível porque: os pés de minha mãe são extremamente sensíveis, muito finos mesmo. Só não sei se isto nasceu da sua mania, que acabou por sensibilizá-los demais . Ou se a sua mania nasceu disto.  

Luisa refinou tanto este velho hábito que agora tem dois chinelos, um para o uso normal e o outro só para quando vai tomar banho.

Ruga


Quando somos muito novos, ouvimos uma série de calamidades sobre o que viria a ser a passagem pro outro mundo – o mundo dos adultos. Quando nos tornamos adultos, sobretudo quando somos jovens adultos, ficamos sabendo de uma outra série de passagens e rituais que nos farão mudar para um mundo mais absurdo ainda... mais distante e mais irrealizável mentalmente – o mundo dos idosos. Com certeza, o sentimento de conformismo nos traz alguma espécie de calmaria e nos trai, ao passo que quanto mais velhos ficamos mais nos acostumamos com a idéia de envelhecer. Quando estamos na flor da idade, pensamos que será uma tragédia muito grande ser um velho, alguns dizem que querem morrer antes de chegar à velhice, acabamos por perceber que, mesmo que pareça o extremo contrário agora, não é tão ruim. Outro dia li numa entrevista o Angeli dizendo que o que ele não gosta nesse negócio de estar velho é que ele perdeu um pouco da sua vitalidade. Contou, inclusive, uma história engraçada: ele disse que foi com a esposa a padaria e ela se dirigiu ao balcão pra comprar alguma coisa enquanto ele ficava esperando, sentado numa mesa. Quando ela voltou, ele estava cochilando. Isso é assustador. Perder a vitalidade física, mesmo não possuindo uma das melhores, me dá medo.


Toda espécie de coisas ruins sobre envelhecer, nós escutamos: perda dos dentes, fraqueza nas pernas, problemas na coluna, enfraquecimento na capacidade de visão, perda dos reflexos, impossibilidade de fazer sexo. Quanto a esta última, vi o Cacá Diegues numa entrevista ontem, e ele disse que mesmo com os seus setenta anos não parou de fazer sexo e que desconhece um caso dessa espécie entre seus amigos de mesma idade. Nessa hora a gente fica pensando se ele está falando isso abertamente porque quer acabar com essa farsa de que tudo tende a piorar com a velhice ou se é porque ele, mesmo com seus setenta anos, quer contar alguma espécie de vantagem. Eu sei que ele não tem necessidade nenhuma de contar vantagem sobre as coisas, o cara é um dos mais comemorados cineastas brasileiros, acho que é o que tem maior número de direção de longas no nosso país. Mas pensando bem, a gente sempre tem algum ponto no qual queremos parecer melhor do que realmente somos. Talvez ele esteja mentindo mesmo. Não importa.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




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