domingo, 28 de novembro de 2010

Elos


Sempre ouvi das minhas irmãs que minha mãe era uma mulher vaidosa no passado e que isto era uma coisa acentuada. Paulatinamente, ela foi deixando-se o mais natural possível, acho que, na realidade, ela passou a achar um desperdício de tempo o cultivo de certos hábitos. Não usa brincos, não usa perfume, não usa salto alto, não se interessa por maquiagem, tem os cabelos curtos. Mas, antes, Luisa sempre gostava de manter-se impecavelmente maquiada, possuía cremes caros e os cabelos maiores, usava algumas poucas jóias. Lembro quando mamãe usava ainda muitos anéis nas mãos. Até que, em algum momento que estava perdido no espaço, ela deixou de usá-los. Isto não me foi motivo de espanto porque eu sempre soube que ela carregava consigo o hábito de abandonar a materialidade.  


Ás vezes, nosso coração sabe de coisas que não sabemos. E quando falo em coração aqui, não quero relacioná-lo diretamente com questões amorosas e afetivas, mas faço, antes de mais nada, uma relação dele com o espírito. O coração é a maior materialização da alma que temos e ninguém me tira isso da cabeça. Quem seria tolo o bastante pra afirmar que aquele aperto no peito  é apenas uma contração muscular causada por uma reação cerebral?  

Parecia que eu já sabia disso, mas entrei em êxtase quando tive como certo aquilo que antes julgava apenas como produto natural do caminho de Luisa.  Tio Nizo estava em nossa casa num domingo de tarde e conversávamos sobre toda essa coisa complexa que é você  ter nas mãos a responsabilidade de educar uma pessoa.  No fluir da conversa, elogiamos comportamentos e desprezamos outros. E minha mãe começou a dizer que, ao contrário de como havia sido com minhas irmãs, nunca havia me dado uma surra, exceto uma vez: por uma razão que não lembrávamos qual , eu era criança ainda e ela estava irritada. Morávamos na nossa saudosa casa da Kalilândia. Ela levantou furiosa da cadeira e aplicou, com alguma força, uns tapas em mim. Acontece que ela estava muito nervosa, provavelmente porque eu devia ter respondido a ela de maneira grosseira, coisa que é inadmissível para Luisa.  Avançou sobre mim e saiu esbofeteando o que via (ou, melhor seria, o que não via) pela frente, foram quatro ou cinco tapas disciplinatórios. O lastimável é que, nesta época, ela usava aqueles vários anéis na mão e, num desses bofetões, um anel atingiu um dos meus olhos que inchou imediatamente. Comecei a choramingar e reclamar que meu olho estava doendo.  Quando ela viu o que havia acontecido, começou a chorar também, me colocou no colo – coisa que me marcou profundamente porque, embora ainda criança, não havia mais esse hábito entre nós – e me pediu desculpas intermináveis: ela contava tudo isso ao meu tio. Até então, nenhuma novidade. Mas, mesmo assim, me encontrava muito emocionada por ela ter se lembrado disto. Nunca antes ela havia tocado no assunto comigo ou em minha presença. Mas foi o que aconteceu a seguir que me fez ficar sem voz. Quando ela terminou de relatar isto, acrescentou: “E é por isso que nunca mais eu coloquei um anel no meu dedo”. 

Comecei a pensar então se, por trás de todas as outras coisas que ela havia deixado de cultivar, teriam razões como esta.

E também sobre como a história destes anéis - assim como os de Saturno - carregava dentro de si tanto gelo, poeira e material rochoso.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




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