domingo, 20 de março de 2011

Blasé


Recomendo a leitura do conto Alemães Comendo, de Katherine Mansfield (Você pode encontrar aqui, embora não esteja na íntegra: Alemães Comendo


Acordei aos prantos, mas havia muita resignação transitando no meu corpo. Não fiz nenhum esforço para chorar, não estava cansada com o processo fatigante das lágrimas. Levantei da cama e com a respiração normal, de quem acorda sem fazer muito sacrifício, me dirigi até a sala. Dei bom dia, com o gosto incontrolável de um destino que queria me provar o contrário: “O que começa mal, termina mal, minha filha”. Me diziam as reminiscências dos Tempos que eu já vivi. Mas minha consciência sabia que tudo poderia ter um desembocar diferente da lei que dita os bons finais de acordo com os bons começos.


Há a política do grito. Eu acredito ter um baixo tom de voz, talvez ele seja baixo apenas em relação as outras vozes da família.  Não consigo estabelecer diálogo algum quando alguém está gritando comigo. O grito impõe, não há conversa que se desenvolva em meio a uma gritaria, é simplesmente um ditar de ordens, uma demonstração clara de quem manda e de quem obedece. E eu, aqui dentro, sempre estou a obedecer.

Somos quatro, as filhas de Luisa. A mais velha dentre nós também não fala muito alto, ela não convive habitualmente conosco, pode ser uma razão. A verdade é que cercada em um mundo onde ser varão quer dizer ser o rei da selva, Luisa se viu obrigada a forjar mecanismos de defesa. Seria ela, pois, a leoa no meio disto tudo. Ela e os seus, no caso, as suas. Falar mais alto não é gritar, a gente se ilude. Me lembro com freqüência das  mulheres de Crumb. As mulheres da minha casa são grandes, como as das histórias em quadrinhos, são educadas e justas, pagam suas contas, têm as suas casas, impõem respeito. Na semana passada, mamãe na sua mania de satisfazer aos outros, estava irrequieta na mesa ao ver que o meu cunhado - o único, diga-se – não estava conseguindo se mexer muito bem, então pediu para que alguém o ajudasse. Ele foi logo se adiantando na resposta e soltou um: “A senhora, por um acaso, criou alguma de suas filhas para servir?”. Todos nós rimos. E ele se virou sozinho. Uma das minhas sobrinhas brinca com o cachorro batendo os pés no chão incessantemente, produzindo um barulho ensurdecedor. E Carolina, de apenas nove anos,  grita pra conseguir tudo o que quer.
 

Eu fiquei o sábado à noite em casa, como tem sido de costume. Aquela trilha no piano, em De Olhos Bem Fechados de Kubrick, me manteve acordada até às quatro e meia da manhã. Mas hoje, as onze, minha mãe me acordou aos berros. Eu no quarto e ela na sala. Lhe disse o quanto isto me incomodava, mas acho que Luisa ainda acredita que vai me evitar os sofrimentos, e tenta me ensinar algumas leis do vociferar. Em meio a tanto amor e também a tanta paciência, mamãe não sabe que eu ainda sou o outro ponto que impede de cairmos para um dos lados. Como os pesos diferentes de uma balança.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




*