segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Esquecer



CANTIGA PARA NÃO MORRER
Ferreira Gullar

Quando você for se embora,/moça branca como a neve,/me leve.
Se acaso você não possa/me carregar pela mão,/menina branca de neve,/me leve no coração.
Se no coração não possa/por acaso me levar,/moça de sonho e de neve,/me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa/por tanta coisa que leve/já viva em seu pensamento,/menina branca de neve,/me leve no esquecimento.

A memória é uma coisa que engana a gente. Aos 24, já não tenho tão próximas a mim as memórias de há dez anos atrás. Embora ainda consiga me lembrar do dia em que eu, lá pelos sete , brincava com os vestidos de Luisa, no meio das portas abertas do seu guarda-roupa. Minha irmã orientava mamãe como ainda faz até hoje, <<mãe, essa menina vai crescer sem aprender as cores. já está na hora dela saber os nomes das cores>>. Parece irreal e se eu questionar a minha irmã hoje sobre esse episódio, a resposta será a mesma de sempre  <<isso nunca aconteceu. você está doida, risos>>. A memória é uma coisa que engana a gente. 


Minha mãe completa 80 anos esse ano. 80 anos de glória e mistério. Nunca ninguém entenderá como Luisa pode ser uma pessoa tão boa, acho que nem ela mesma. Há muito tempo, rola um papo de que ser muito bom é um defeito (por isso o evangelho traz a moral de Jesus como uma moral estranha) - as personagens de novela repetem isso, <<se você voltar apanhado pra casa, você vai apanhar de novo>>, as pessoas se sentem ofendidas consigo mesmas por se deixarem ser enganadas. Nesse ponto, minha mãe é verdadeiramente cristã, e me ensinou isso. Dê a outra face, não discuta, não brigue, se brigarem com você, cale-se que passa, se  ofenderem você, cale-se que passa. Se chorar, beba a lágrima way of life.  


No último amigo secreto da família, eu decidi não participar. Sem maiores explicações. A pessoa que tirou Luisa surpreendeu a todos. Na verdade, não sei se a todos, surpreendeu a mim. Surpreendeu-me, <<existiram reis que preferiram ser temidos do que amados. mas essa pessoa quebra essa lógica, ela prefere ser amada do que temida>>. Minha mãe é assim. E quando, ontem mesmo, me aconselharam <<crie laços, invente pontos de afinidade, mesmo que seja mentira>>, eu lembrei dela. 

A memória de Luisa sempre foi sua amiga. Mesmo sabendo que, agora, aos quase 80, a memória continua sendo uma ilha de edição, mas, inevitavelmente, aos 80, o editor não somos nós. 

sábado, 20 de agosto de 2011

Precipitar


"(...)
Quando uma lua chega de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher(...)"


Durante muito tempo nas nossas vidas tentamos de todo o modo... de todo o modo... nos afirmarmos enquanto sujeitos. Por um momento rejeitei o uso desse termo “sujeito”, parece algo meio metodológico usá-lo. Juro que lembro quando me dei conta do que era ter esse corpo e ser responsável por ele, essa coisa de ser uma pessoa me marcou muito lá pela idade dos dez anos. Antes disso, eu julgava viver num filme, vivia me assistindo, mas não acreditava que fosse possível eu mesma exercer as ações, deve ser por isso que a passividade, de alguma forma, é repugnantemente presente ainda em muitas coisas da minha vida (neste momento eu pensei em usar o termo “no meu estar no mundo”, mas outra vez me soou extremamente metodológico, como me soa também a expressão “estar à deriva”).  


É muito paranóico você viver evitando coisas que você não gosta, deixando de falar coisas (que você não gosta) para não se assemelhar com aquelas pessoas com quem você não simpatiza, não fazer coisas que lembrem estas mesmas pessoas. Lutar pela naturalidade talvez seja uma outra paranóia. Ninguém deveria pensar nas coisas das quais não gosta, nem pensar que não deseja ser desta ou daquela maneira. As pessoas deveriam ser, sem exatamente pensar no caminho que percorrem para sê-lo. Bastaria percorrê-lo. Quando eu, por exemplo, digo sobre ser metodológico é porque eu sei que as pessoas que se utilizam das expressões que eu apontei como uma metodologia - o fazem para ser alguma coisa, compreende? Ninguém diz “estive pensando no meu estar no mundo” sem alguma pretensão. De soar bonito, no mínimo. Pode ser que não, tem gente que não tem pretensão. A gente demora pra saber que o bonito é como qualquer fenômeno da natureza. Ser profundo, inteligente e bonito é assim como chover.

Tudo isso até aqui foi para dizer que se eu começasse o texto dizendo: “Como vocês sabem, aqui nesta família são as mulheres quem comandam.”, não seria pretensioso ou mera militância-barata-feminista de uma jovem de vinte e um anos. Mas acontece que é isso mesmo. Mamãe diz odiar Vinicius de Moraes por conta daquele verso “As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”.  Não exatamente por ele submeter às mulheres ao mero quesito estético, ou talvez apenas por isto. Luisa nunca bebeu na vida e ela não compreende como alguém poderia fazer shows, impreterivelmente, com uma garrafa de uísque do lado e ser diplomata e poeta ao mesmo tempo. Ás vezes, eu acho que ela simplesmente não gosta desse negócio dele com a bebida, e o problema todo é esse, mas ela sempre se justifica com o verso do “as feias... etc”.



Luisa nunca leu Simone de Beauvoir. Nem Katherine Mansfield, para quem Vinicius até escreveu um soneto, mas ela aprendeu a cair como a água das nuvens que não sabem porque caem e fazem brotar tanta vida na terra úmida.

domingo, 20 de março de 2011

Blasé


Recomendo a leitura do conto Alemães Comendo, de Katherine Mansfield (Você pode encontrar aqui, embora não esteja na íntegra: Alemães Comendo


Acordei aos prantos, mas havia muita resignação transitando no meu corpo. Não fiz nenhum esforço para chorar, não estava cansada com o processo fatigante das lágrimas. Levantei da cama e com a respiração normal, de quem acorda sem fazer muito sacrifício, me dirigi até a sala. Dei bom dia, com o gosto incontrolável de um destino que queria me provar o contrário: “O que começa mal, termina mal, minha filha”. Me diziam as reminiscências dos Tempos que eu já vivi. Mas minha consciência sabia que tudo poderia ter um desembocar diferente da lei que dita os bons finais de acordo com os bons começos.


Há a política do grito. Eu acredito ter um baixo tom de voz, talvez ele seja baixo apenas em relação as outras vozes da família.  Não consigo estabelecer diálogo algum quando alguém está gritando comigo. O grito impõe, não há conversa que se desenvolva em meio a uma gritaria, é simplesmente um ditar de ordens, uma demonstração clara de quem manda e de quem obedece. E eu, aqui dentro, sempre estou a obedecer.

Somos quatro, as filhas de Luisa. A mais velha dentre nós também não fala muito alto, ela não convive habitualmente conosco, pode ser uma razão. A verdade é que cercada em um mundo onde ser varão quer dizer ser o rei da selva, Luisa se viu obrigada a forjar mecanismos de defesa. Seria ela, pois, a leoa no meio disto tudo. Ela e os seus, no caso, as suas. Falar mais alto não é gritar, a gente se ilude. Me lembro com freqüência das  mulheres de Crumb. As mulheres da minha casa são grandes, como as das histórias em quadrinhos, são educadas e justas, pagam suas contas, têm as suas casas, impõem respeito. Na semana passada, mamãe na sua mania de satisfazer aos outros, estava irrequieta na mesa ao ver que o meu cunhado - o único, diga-se – não estava conseguindo se mexer muito bem, então pediu para que alguém o ajudasse. Ele foi logo se adiantando na resposta e soltou um: “A senhora, por um acaso, criou alguma de suas filhas para servir?”. Todos nós rimos. E ele se virou sozinho. Uma das minhas sobrinhas brinca com o cachorro batendo os pés no chão incessantemente, produzindo um barulho ensurdecedor. E Carolina, de apenas nove anos,  grita pra conseguir tudo o que quer.
 

Eu fiquei o sábado à noite em casa, como tem sido de costume. Aquela trilha no piano, em De Olhos Bem Fechados de Kubrick, me manteve acordada até às quatro e meia da manhã. Mas hoje, as onze, minha mãe me acordou aos berros. Eu no quarto e ela na sala. Lhe disse o quanto isto me incomodava, mas acho que Luisa ainda acredita que vai me evitar os sofrimentos, e tenta me ensinar algumas leis do vociferar. Em meio a tanto amor e também a tanta paciência, mamãe não sabe que eu ainda sou o outro ponto que impede de cairmos para um dos lados. Como os pesos diferentes de uma balança.

domingo, 28 de novembro de 2010

Elos


Sempre ouvi das minhas irmãs que minha mãe era uma mulher vaidosa no passado e que isto era uma coisa acentuada. Paulatinamente, ela foi deixando-se o mais natural possível, acho que, na realidade, ela passou a achar um desperdício de tempo o cultivo de certos hábitos. Não usa brincos, não usa perfume, não usa salto alto, não se interessa por maquiagem, tem os cabelos curtos. Mas, antes, Luisa sempre gostava de manter-se impecavelmente maquiada, possuía cremes caros e os cabelos maiores, usava algumas poucas jóias. Lembro quando mamãe usava ainda muitos anéis nas mãos. Até que, em algum momento que estava perdido no espaço, ela deixou de usá-los. Isto não me foi motivo de espanto porque eu sempre soube que ela carregava consigo o hábito de abandonar a materialidade.  


Ás vezes, nosso coração sabe de coisas que não sabemos. E quando falo em coração aqui, não quero relacioná-lo diretamente com questões amorosas e afetivas, mas faço, antes de mais nada, uma relação dele com o espírito. O coração é a maior materialização da alma que temos e ninguém me tira isso da cabeça. Quem seria tolo o bastante pra afirmar que aquele aperto no peito  é apenas uma contração muscular causada por uma reação cerebral?  

Parecia que eu já sabia disso, mas entrei em êxtase quando tive como certo aquilo que antes julgava apenas como produto natural do caminho de Luisa.  Tio Nizo estava em nossa casa num domingo de tarde e conversávamos sobre toda essa coisa complexa que é você  ter nas mãos a responsabilidade de educar uma pessoa.  No fluir da conversa, elogiamos comportamentos e desprezamos outros. E minha mãe começou a dizer que, ao contrário de como havia sido com minhas irmãs, nunca havia me dado uma surra, exceto uma vez: por uma razão que não lembrávamos qual , eu era criança ainda e ela estava irritada. Morávamos na nossa saudosa casa da Kalilândia. Ela levantou furiosa da cadeira e aplicou, com alguma força, uns tapas em mim. Acontece que ela estava muito nervosa, provavelmente porque eu devia ter respondido a ela de maneira grosseira, coisa que é inadmissível para Luisa.  Avançou sobre mim e saiu esbofeteando o que via (ou, melhor seria, o que não via) pela frente, foram quatro ou cinco tapas disciplinatórios. O lastimável é que, nesta época, ela usava aqueles vários anéis na mão e, num desses bofetões, um anel atingiu um dos meus olhos que inchou imediatamente. Comecei a choramingar e reclamar que meu olho estava doendo.  Quando ela viu o que havia acontecido, começou a chorar também, me colocou no colo – coisa que me marcou profundamente porque, embora ainda criança, não havia mais esse hábito entre nós – e me pediu desculpas intermináveis: ela contava tudo isso ao meu tio. Até então, nenhuma novidade. Mas, mesmo assim, me encontrava muito emocionada por ela ter se lembrado disto. Nunca antes ela havia tocado no assunto comigo ou em minha presença. Mas foi o que aconteceu a seguir que me fez ficar sem voz. Quando ela terminou de relatar isto, acrescentou: “E é por isso que nunca mais eu coloquei um anel no meu dedo”. 

Comecei a pensar então se, por trás de todas as outras coisas que ela havia deixado de cultivar, teriam razões como esta.

E também sobre como a história destes anéis - assim como os de Saturno - carregava dentro de si tanto gelo, poeira e material rochoso.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Âmago


Parece até ser expansividade, e eu asseguro que, em certa medida, o é. Mas o que me é mais marcante no comportamento de minha mãe é a maneira que ela encontra pra exercer seus mistérios. Acontece muito de, num domingo qualquer, ela decidir que é chegado o momento de me contar alguma história sobre a sua vida, algum acontecimento, algum fato que, na maioria das vezes é incrível e inacreditável.

Me lembro que num dia desses ela começou a me contar a história da minha avó. Ela se chamava Hermínia e foi uma mulher à frente do seu tempo. Sempre havia achado estranho o fato de minha mãe ser filha única; como vocês sabem, a pelo menos cinqüenta anos atrás não havia tantos métodos contraceptivos, e as famílias quase que não eram compostas por filhos únicos. Isso só devia ocorrer em casos patológicos, quando a progenitora não poderia mais ter outros filhos ou em casos especiais e curiosos, como é o caso da minha avó. Lá na Espanha as pessoas são bem cristãs e tradicionalistas, mas o que vou lhes contar a seguir não traz em si nenhum traço de recato ou moralismo. Minha mãe é filha única pelo fato de que numa Espanha do passado, muito mais conservadora que a Espanha atual, a minha avó desafiou os dogmas de qualquer espécie e engravidou de um homem por quem havia se apaixonado, meu avô. Eles não se casaram, tampouco ficaram juntos. Meu avô foi preso na Segunda Guerra Mundial por ser esquerdista. Ao ser liberado, foi morar na França, onde conheceu uma outra mulher e se casou com ela, depois de ter enviado cartas e mais cartas pedindo pra que minha avó se mudasse para lá e ter recebido sempre  recusas de Hermínia que, com medo, se negava a deixar a sua terra . Quando minha mãe já era uma jovenzinha de seus vinte e poucos anos, foi fazer uma visita às terras francesas para, finalmente, conhecer o seu pai, pessoa com quem só trocava cartas e fotos, até então.

Minha avó, mãe solteira, nunca casou – por preconceito e discriminação da sociedade da época, suponho, embora minha mãe negue este fato: diz que foi porque não era de sua vontade casar-se com alguém que não fosse o seu eterno amado. Foi obrigada a passar grande parte dos seus dias longe de minha mãe porque tinha que trabalhar para lhe dar de comer. Luisa foi criada, praticamente, por sua avó, tendo como irmãs duas primas que, por alguma razão, conviveram com ela por muito tempo. E assim começou a saga da família Rodriguez. Nenhuma mulher descendente de Hermínia Rodriguez Abalde se submeteu aos cuidados monetários de um homem qualquer. E, mais que isso, nunca nos submetemos ou nos submeteremos em nenhuma estância. Talvez um dos fatos mais significativos seja o de que minha mãe não possua o sobrenome do meu pai e que por uma espécie de estigma, de carma e inevitabilidade, teve quatro filhas mulheres, das quais eu sou a caçula.  Para alargar ainda mais o teor epopéico desta história, deixo-lhes a informação de que é em solo feirense que está enterrada Hermínia. Como ela veio parar aqui? Mistérios que só Dona Luisa poderá nos confidenciar, num dia qualquer, sem pretensão e sem razão.

sábado, 2 de outubro de 2010

Espinhos


Não diria que é exatamente uma mania. Chamaria isto de bom gosto e até mesmo de uma elevação de espírito resultante em uma sensibilidade aflorada. Você gostar de flores, conseguir se encantar com elas, se entreter com as surpresas do reino vegetal: minha mãe. Minha mãe considera que as flores e todas as plantas aqui de casa são como membros da família, ao passo que quando nos mudamos da Kalilândia para o centro da cidade – minha mãe já tinha trinta anos naquele mesmo endereço – aquela fauna gigantesca nos acompanhou, nossa antiga casa era muito grande, afinal. 

Mamãe sempre ocupava (e ainda ocupa) todos os espaços com plantas, sobretudo as naturais, havia ainda umas artificiais espalhadas pelos cômodos, nas janelas e corredores. O desafio era fazer com que todos aqueles seres vegetais dessem dentro de um apartamento. Eu e Luisa moramos num lugar confortável, grande pros moldes do que se vem produzindo hoje na arquitetura da cidade quando falamos em prédios, em tempos de coisas tão compactas, temos o privilégio de morar em um lugar ordenado verticalmente mas com um certo espaço, de modo que quase todas as plantas vieram conosco na mudança. Infelizmente, havia uma escultura ornada com flores muito bonita na nossa antiga casa que teve de ser passada adiante, mamãe deu pra alguém.

O domingo será pra sempre o nosso dia, o dia meu e de minha mãe, é quando ocorrem os nossos maiores encontros, as nossas maiores comunhões, deve ser por isso que sempre achei que acertaram quando, por alguma razão, deram um domingo do ano como o dia das mães. Numa dessas manhãs de domingo minha mãe me chamou até a sala, prontamente a atendi.

 – Oi, mãe. Estou aqui. 
– Olha essa planta aqui. Parece que não vai brotar nunca uma flor nela.

Quando meus olhos pousaram sobre o vaso que ela indicava com o dedo, pude perceber que havia alguma coisa errada de fato.

-Mãe, esta flor é de plástico.


*


E é por isso também que me emociona tanto o verso “ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos”, porque a palavra fibra conota sempre algo de natural, de vegetal. E penso em minha mãe que com tanto afinco cuida de mim, desdobrando, abrindo, desvendando, sempre, fibra por fibra.


sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ardil


Nunca duvidei daquela máxima que diz que não importa o que exatamente você fala, mas sim, a maneira que o faz. Acho que é uma coisa extremamente clara e sensata, embora, na maioria dos casos, eu não consiga me portar devidamente, acabo sempre por falar as coisas mais bobas da pior maneira possível, fazendo tempestades em míseros copos de cafezinho. Creiam vocês, não sei como adquiri características tão distintas da minha mãe. Estava hoje falando com algumas pessoas sobre carma, sem querer utilizar o termo/conceito como uma justificativa pras coisas que acontecem e sem tratá-lo como um sinônimo pra destino - talvez exista alguma ligação.  As nossas relações são marcadas por uma grande porção de carmas, relações familiares, sobretudo. A minha família e eu, em especial, temos um motivo muito forte pra potencializarmos essa característica, me permitiria usar a palavra destino sem recear estar fazendo apelos místicos. Lamento que nenhum de vocês saiba ou saberá do que trato aqui, só lhes digo que é impossível olhar pra minha família e não pensar a respeito do porquê de estarmos juntos.

Minha mãe não é brasileira, ela nasceu na cidade de Vigo na Galícia – Espanha. Nunca conversei com ela sobre seu processo de aquisição do português, e ainda assim poderia afirmar que ela não tenha tido muitas dificuldades, minha mãe lê com muita voracidade e tem uma gama enorme de conhecimentos lexicais - o que me prejudicou um pouco na infância porque não havia uma só palavra que eu perguntasse e ela não soubesse me dizer exatamente o que aquilo queria dizer, isso provocou a ausência do dicionário nas minhas primeiras leituras e uma posterior falta de interesse em consultá-lo, bastava minha mãe estar por perto, e ela sempre estava. Mas aconteceu de hoje eu ser viciada em dicionários, procuro até o significado das palavras conhecidas.  

O fato é que minha mãe sempre chama as pessoas de cretinas, isso causava um pouco de constrangimento pra mim quando ela soltava um “seu cretino” pra um amigo meu que ainda era seu desconhecido.  Mas, depois de um tempo, isso se tornou a coisa mais encantadora que eu poderia encontrar em uma pessoa, me orgulhava poder - depois da crise de risos que os “cretinos” que minha mãe falava causavam nas pessoas que não conheciam esse seu hábito – explicar que esse era um costume de minha mãe e que não era nada pessoal, precisamente. Ela fala cretino em situações específicas, é claro, mas mesmo que falasse em situações aleatórias, continuaria sendo uma peculiaridade sua.

Talvez, ela esteja sendo apenas, de maneira astuciosa, em sua grande naturalidade diante da vida, debochada em relação a nossa mania cansativa de vivermos dissimulando a nossa cretinice diante de todas as coisas.

domingo, 5 de setembro de 2010

Ignorada





Minha família segue muitas convenções. O Natal aqui em casa sempre é celebrado com uma ceia que há anos tem o mesmo cardápio. Fazemos a brincadeira do amigo-secreto que, depois da ceia, é o momento mais esperado da noite. Além da troca de presentes, todos esperamos ansiosamente pra dizermos as coisas que são caladas durante o resto do ano. Tudo aquilo que deixamos de falar por vergonha, por falta de vontade ou por despercebimento, é dito nos cinco minutos de descrição do nosso amigo oculto. Não espero nada além de coisas mal ditas, embora já tenha me surpreendido em muitos casos. Se minha família estrelasse um filme ele seria tragicômico, sem nenhuma sombra de dúvida.


Todos os anos, fico ansiosa pra saber quem falará depois da oração feita antes da ceia, mas, sem muitas surpresas, minha mãe é sempre a escolhida. Eu não tenho nenhuma vontade de falar nesse momento que antecede a ceia e quase nunca me impressionei com o discurso de outras pessoas, mas sempre me emociono com as palavras de minha mãe. Além de todas essas expectativas, nada supera a comoção de se tirar Luisa no amigo-secreto. Minha mãe é a pessoa mais desejada e - embora sem muita razão de ser, porque todos sempre fazem declarações sobre ela durante o ano todo, ao contrário do que acontece com todas as outras pessoas – o sortudo que tira o papel com o seu nome sempre prepara um discurso especial. Uns declamam poemas, outros preparam músicas, procuram bonitos textos para ler, além de regarem todas as homenagens com muitas lágrimas emocionadas e engasgos, motivados por uma agitação contida.


Eu nunca havia tirado minha mãe no amigo-secreto, esperava calmamente pelo ano em que isto aconteceria. Finalmente, no final do ano passado, eu abri o papel e quase choro de emoção só de saber que eu que havia sido a premiada naquele ano. Não estava preocupada com o presente, comprei um livro no dia seguinte ao sorteio. O que me preocupava era o que eu falaria pra descrever Luisa. Optei por fazer uma coisa diferente: humanizaria minha mãe. Já tinha o discurso preparado, eu falaria coisas como: “Todos esquecem que a pessoa que eu tirei é, antes de ser mãe, uma mulher e por isto tem fraquezas, tem frustrações, tem desejos, tem sonhos e tem defeitos. Não deveríamos nos esquecer disto, não deveríamos achar que ela tem de suportar, sem demonstrar suas dores, todas as coisas que acontecem nesta família...”, etc. etc. 


Eu estava nervosa e inquieta naquela noite. Quando, Daniele - uma amiga de minha mãe que sempre passa o Natal com nossa família - se levantou e começou a sua descrição,  eu não podia acreditar no que eu estava ouvindo mas foi o que aconteceu: alguma coisa tinha dado errado e Daniele havia pronunciado em alto e bom som que a pessoa que ela havia tirado era... a minha mãe. Imaginem o estado em que eu fiquei, estava desapontada, decepcionada com aquela brincadeira que havia se transformado numa confusão sem graça. Levantei da cadeira e gritei que quem havia tirado minha mãe tinha sido eu, TINHA SIDO EU! Depois de várias gargalhadas dos presentes, a confusão foi esclarecida. Não vem ao caso o que havia sucedido, mas o que aconteceu em seguida. Mesmo sem nenhuma vontade, eu fui incentivada a falar - todos sabiam que eu também havia preparado coisas bonitas pra dizer naquela ocasião. Meio retraída e já com lágrimas nos olhos eu comecei: “Bom, todos esquecem que minha mãe, antes de ser mãe, é uma mulher...”. Algumas pessoas pareciam chocadas com as minhas palavras e eram visíveis as lágrimas de comoção em mais de dois dos presentes.  Mas mal eu havia terminada a primeira afirmação, o celular de uma irmã minha tocou e ela, indiscretamente e indelicadamente,   atendeu e começou a estabelecer um diálogo ali mesmo, entre lágrimas,  abalos e decepções. Esta irmã minha fala muito alto, eu fui obrigada a calar-me e sem dizer mais nada me retirar da sala e me dirigir pra o meu quarto, no qual fiquei trancada aos prantos até que uma outra irmã minha - completamente diferente daquela outra -   viesse me chamar pra integrar novamente o seio familiar durante o resto da noite de Natal.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Servir



Minha mãe é o tipo de pessoa que levou isso de servir primeiro aos outros as últimas conseqüências. Não sei se pela sua formação católica ou se pela sua boa índole, ou por ambas (ou outras) razões.

Um dia eu estava comentando com uma amiga que minha mãe havia ensinado a todas aqui de casa que deveríamos nos colocar sempre por último, até nas coisas mais triviais, como quando, por exemplo, estamos falando no telefone e a pessoa do outro lado da linha pergunta quem está com a gente. Devemos responder: “Estamos aqui Fulano, Beltrano, Sicrano e eu”. Se for servir um café, sua xícara deve ser a última, etc. O eu deve sempre ser colocado por último. Lembro que, quando eu era criança, isto nunca foi imposto, era falado com tanta delicadeza que minha mãe acabava me convencendo pelo excesso de sensatez que eu, mesmo com pouca idade, conseguia entender. Foram ensinamentos budistas estes que eu tive, por certo, embora minha mãe ainda vá à igreja Católica Apostólica Romana todos os sábados – santos ou não, e sobre o grau de ensinamentos budistas sabemos o quão a Igreja está bem, digamos, defasada.

Durante as refeições, não há um prato sequer na mesa que minha mãe não “fiscalize”, pode ser a primeira vez de um amigo meu na nossa casa, não importa de quem é o prato, importa que estando sobre o teto de Luisa, a pessoa tem de comer e tem de comer até ficar satisfeito. Uma das minhas irmãs se incomoda terrivelmente com essa atitude de minha mãe, segundo ela, Luisa fica monitorando o que as pessoas comem ou não, grande engano. Minha mãe não quer saber se você comeu trinta colheres de puro arroz - se esta for a sua real vontade. O que ela quer é que você coma trinta colheres, ou quantas colheres forem necessárias pra que você se sinta bem. Dona Luisa não admite que nenhuma pessoa não se sinta à vontade estando dentro de sua casa e usa todas as artimanhas para que a sua vontade seja feita: ela sabe o momento de falar e o momento de calar, é uma coisa intuitiva, impressionante mesmo. Já vi pessoas que se desconcertam com qualquer desconhecido de tanta timidez que sentem, mas com minha mãe tudo é diferente, passam muito tempo conversando sobre quaisquer coisas. Desconheço a existência de uma só pessoa que não tenha gostado da minha mãe, e isto é curioso se você levar em consideração que ela é uma comerciante. Comerciantes em Feira de Santana vocês sabem como são. E se tem uma coisa que minha mãe não é, essa coisa é egoísta. 

sábado, 28 de agosto de 2010

Portas




É uma mania do homem moderno, é uma praga e embora lastimável: sempre achamos que todos os nossos defeitos podem ser justificados de alguma maneira. Se tivermos alguma mania, qualquer espécie de idiossincrasia ou falha de caráter, tudo, tudo mesmo, qualquer deslize moral, pessoal ou social pode ser relevado se tiver uma causa em alguma razão considerada muito forte, forte ao ponto de cometermos "erros" em decorrência dela. 

Incutiram nas nossas cabeças que tudo vem de um trauma, em geral, um trauma que adquirimos por algum episódio que aconteceu quando éramos crianças. É uma velha mania isto de querermos nos justificar por tudo aquilo que fazemos, sobretudo, o que fazemos de ruim, questionável e condenável em qualquer instância.  Não queremos ser condenados,  muito menos sermos condenados sem ao menos termos as nossas razões pra nos justificarmos. 

Criamos pretextos para nós mesmos.

Somos levados a acreditar que devemos ser o herói. Esse desejo de querer ser sempre o cara inabalável, inquestionável e soberano, seqüela a gente e tem gente que a passa a vida inteira sequelado, pedindo desculpas pelos seus "defeitos" até pra própria sombra. Assumir a postura do anti-herói não ajuda muito, embora, em algum momento da vida, a gente supõe que essa vai ser a melhor solução. Bobagem.

Minha mãe tem uma mania terrível a respeito das portas.

A verdade é que minha mãe tem manias terríveis e isto não passaria de uma normalidade se eu não fosse sua filha, além, daquilo que eu considero o agravante: dividir o mesmo teto com ela, sendo cúmplice de todas as coisas que ela faz. Fica difícil achar que tudo está dentro dos conformes quando se tem de viver cercado por delimitações de autoria de uma outra pessoa, particularmente quando esta outra pessoa é sua mãe - não precisaria dizer que este é o meu caso.  

Bom, as portas, acontece o seguinte com as portas: minha mãe tem verdadeiro pavor de portas fechadas. Já passei muito tempo da minha vida tentando entender o porquê. Primeiro pensei num fator banal, depois tentei encontrar respostas em alguma razão dentro do campo da psicologia (ou sei lá que outro campo abarca as paranóias humanas),  resvalando, é claro, na infância de Luisa. 

O fator banal: minha família é composta por mulheres, temos, claro, os progenitores, mas as mulheres são a maioria e é de mulheres que se forma a espinha dorsal disto que eu compreendo e entendo como “minha família”. Então, eu imagino que, na cabeça de minha mãe, não há necessidade de que se fechem as portas numa casa onde nada precisa ser escondido, em tese. 

Minha mãe faz tudo com a porta aberta, inclusive ir ao banheiro, por exemplo. 

O fator psicológico, (ou a válvula de escape pras loucuras da gente): suponho que alguma coisa de terrível aconteceu com Luisa quando ela era criança - ou mais jovem, que seja. Algo deve ter sido escondido dela, algum segredo sobre alguma coisa brutal, não sei. O que eu sei é que ela não deve ter reagido bem a isto e hoje acha que todos estão querendo esconder alguma coisa dela, e é por essa razão que faz questão de que todas em casa tenhamos as portas sempre escancaras. Porta fechada é sinônimo de mentira e falcatrua. 

Isso tudo é só suposição, evidentemente. Esse assunto nunca foi tratado de maneira curiosa. Sempre foi uma mania da minha mãe, nada além disso, e como todas as outras coisas que ela faz, inquestionável. Pra exasperação de Dona Luisa, eu nasci com o Yin do Yang dela. Me aborreço com portas abertas, e sempre carrego tudo pelo lado de dentro, com as portas bem fechadas. 

Deve ser por isso que minha mãe parece tão bem resolvida, o inverso de mim.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




*