quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Âmago


Parece até ser expansividade, e eu asseguro que, em certa medida, o é. Mas o que me é mais marcante no comportamento de minha mãe é a maneira que ela encontra pra exercer seus mistérios. Acontece muito de, num domingo qualquer, ela decidir que é chegado o momento de me contar alguma história sobre a sua vida, algum acontecimento, algum fato que, na maioria das vezes é incrível e inacreditável.

Me lembro que num dia desses ela começou a me contar a história da minha avó. Ela se chamava Hermínia e foi uma mulher à frente do seu tempo. Sempre havia achado estranho o fato de minha mãe ser filha única; como vocês sabem, a pelo menos cinqüenta anos atrás não havia tantos métodos contraceptivos, e as famílias quase que não eram compostas por filhos únicos. Isso só devia ocorrer em casos patológicos, quando a progenitora não poderia mais ter outros filhos ou em casos especiais e curiosos, como é o caso da minha avó. Lá na Espanha as pessoas são bem cristãs e tradicionalistas, mas o que vou lhes contar a seguir não traz em si nenhum traço de recato ou moralismo. Minha mãe é filha única pelo fato de que numa Espanha do passado, muito mais conservadora que a Espanha atual, a minha avó desafiou os dogmas de qualquer espécie e engravidou de um homem por quem havia se apaixonado, meu avô. Eles não se casaram, tampouco ficaram juntos. Meu avô foi preso na Segunda Guerra Mundial por ser esquerdista. Ao ser liberado, foi morar na França, onde conheceu uma outra mulher e se casou com ela, depois de ter enviado cartas e mais cartas pedindo pra que minha avó se mudasse para lá e ter recebido sempre  recusas de Hermínia que, com medo, se negava a deixar a sua terra . Quando minha mãe já era uma jovenzinha de seus vinte e poucos anos, foi fazer uma visita às terras francesas para, finalmente, conhecer o seu pai, pessoa com quem só trocava cartas e fotos, até então.

Minha avó, mãe solteira, nunca casou – por preconceito e discriminação da sociedade da época, suponho, embora minha mãe negue este fato: diz que foi porque não era de sua vontade casar-se com alguém que não fosse o seu eterno amado. Foi obrigada a passar grande parte dos seus dias longe de minha mãe porque tinha que trabalhar para lhe dar de comer. Luisa foi criada, praticamente, por sua avó, tendo como irmãs duas primas que, por alguma razão, conviveram com ela por muito tempo. E assim começou a saga da família Rodriguez. Nenhuma mulher descendente de Hermínia Rodriguez Abalde se submeteu aos cuidados monetários de um homem qualquer. E, mais que isso, nunca nos submetemos ou nos submeteremos em nenhuma estância. Talvez um dos fatos mais significativos seja o de que minha mãe não possua o sobrenome do meu pai e que por uma espécie de estigma, de carma e inevitabilidade, teve quatro filhas mulheres, das quais eu sou a caçula.  Para alargar ainda mais o teor epopéico desta história, deixo-lhes a informação de que é em solo feirense que está enterrada Hermínia. Como ela veio parar aqui? Mistérios que só Dona Luisa poderá nos confidenciar, num dia qualquer, sem pretensão e sem razão.

sábado, 2 de outubro de 2010

Espinhos


Não diria que é exatamente uma mania. Chamaria isto de bom gosto e até mesmo de uma elevação de espírito resultante em uma sensibilidade aflorada. Você gostar de flores, conseguir se encantar com elas, se entreter com as surpresas do reino vegetal: minha mãe. Minha mãe considera que as flores e todas as plantas aqui de casa são como membros da família, ao passo que quando nos mudamos da Kalilândia para o centro da cidade – minha mãe já tinha trinta anos naquele mesmo endereço – aquela fauna gigantesca nos acompanhou, nossa antiga casa era muito grande, afinal. 

Mamãe sempre ocupava (e ainda ocupa) todos os espaços com plantas, sobretudo as naturais, havia ainda umas artificiais espalhadas pelos cômodos, nas janelas e corredores. O desafio era fazer com que todos aqueles seres vegetais dessem dentro de um apartamento. Eu e Luisa moramos num lugar confortável, grande pros moldes do que se vem produzindo hoje na arquitetura da cidade quando falamos em prédios, em tempos de coisas tão compactas, temos o privilégio de morar em um lugar ordenado verticalmente mas com um certo espaço, de modo que quase todas as plantas vieram conosco na mudança. Infelizmente, havia uma escultura ornada com flores muito bonita na nossa antiga casa que teve de ser passada adiante, mamãe deu pra alguém.

O domingo será pra sempre o nosso dia, o dia meu e de minha mãe, é quando ocorrem os nossos maiores encontros, as nossas maiores comunhões, deve ser por isso que sempre achei que acertaram quando, por alguma razão, deram um domingo do ano como o dia das mães. Numa dessas manhãs de domingo minha mãe me chamou até a sala, prontamente a atendi.

 – Oi, mãe. Estou aqui. 
– Olha essa planta aqui. Parece que não vai brotar nunca uma flor nela.

Quando meus olhos pousaram sobre o vaso que ela indicava com o dedo, pude perceber que havia alguma coisa errada de fato.

-Mãe, esta flor é de plástico.


*


E é por isso também que me emociona tanto o verso “ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos”, porque a palavra fibra conota sempre algo de natural, de vegetal. E penso em minha mãe que com tanto afinco cuida de mim, desdobrando, abrindo, desvendando, sempre, fibra por fibra.


Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




*