sábado, 20 de agosto de 2011

Precipitar


"(...)
Quando uma lua chega de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher(...)"


Durante muito tempo nas nossas vidas tentamos de todo o modo... de todo o modo... nos afirmarmos enquanto sujeitos. Por um momento rejeitei o uso desse termo “sujeito”, parece algo meio metodológico usá-lo. Juro que lembro quando me dei conta do que era ter esse corpo e ser responsável por ele, essa coisa de ser uma pessoa me marcou muito lá pela idade dos dez anos. Antes disso, eu julgava viver num filme, vivia me assistindo, mas não acreditava que fosse possível eu mesma exercer as ações, deve ser por isso que a passividade, de alguma forma, é repugnantemente presente ainda em muitas coisas da minha vida (neste momento eu pensei em usar o termo “no meu estar no mundo”, mas outra vez me soou extremamente metodológico, como me soa também a expressão “estar à deriva”).  


É muito paranóico você viver evitando coisas que você não gosta, deixando de falar coisas (que você não gosta) para não se assemelhar com aquelas pessoas com quem você não simpatiza, não fazer coisas que lembrem estas mesmas pessoas. Lutar pela naturalidade talvez seja uma outra paranóia. Ninguém deveria pensar nas coisas das quais não gosta, nem pensar que não deseja ser desta ou daquela maneira. As pessoas deveriam ser, sem exatamente pensar no caminho que percorrem para sê-lo. Bastaria percorrê-lo. Quando eu, por exemplo, digo sobre ser metodológico é porque eu sei que as pessoas que se utilizam das expressões que eu apontei como uma metodologia - o fazem para ser alguma coisa, compreende? Ninguém diz “estive pensando no meu estar no mundo” sem alguma pretensão. De soar bonito, no mínimo. Pode ser que não, tem gente que não tem pretensão. A gente demora pra saber que o bonito é como qualquer fenômeno da natureza. Ser profundo, inteligente e bonito é assim como chover.

Tudo isso até aqui foi para dizer que se eu começasse o texto dizendo: “Como vocês sabem, aqui nesta família são as mulheres quem comandam.”, não seria pretensioso ou mera militância-barata-feminista de uma jovem de vinte e um anos. Mas acontece que é isso mesmo. Mamãe diz odiar Vinicius de Moraes por conta daquele verso “As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”.  Não exatamente por ele submeter às mulheres ao mero quesito estético, ou talvez apenas por isto. Luisa nunca bebeu na vida e ela não compreende como alguém poderia fazer shows, impreterivelmente, com uma garrafa de uísque do lado e ser diplomata e poeta ao mesmo tempo. Ás vezes, eu acho que ela simplesmente não gosta desse negócio dele com a bebida, e o problema todo é esse, mas ela sempre se justifica com o verso do “as feias... etc”.



Luisa nunca leu Simone de Beauvoir. Nem Katherine Mansfield, para quem Vinicius até escreveu um soneto, mas ela aprendeu a cair como a água das nuvens que não sabem porque caem e fazem brotar tanta vida na terra úmida.

domingo, 20 de março de 2011

Blasé


Recomendo a leitura do conto Alemães Comendo, de Katherine Mansfield (Você pode encontrar aqui, embora não esteja na íntegra: Alemães Comendo


Acordei aos prantos, mas havia muita resignação transitando no meu corpo. Não fiz nenhum esforço para chorar, não estava cansada com o processo fatigante das lágrimas. Levantei da cama e com a respiração normal, de quem acorda sem fazer muito sacrifício, me dirigi até a sala. Dei bom dia, com o gosto incontrolável de um destino que queria me provar o contrário: “O que começa mal, termina mal, minha filha”. Me diziam as reminiscências dos Tempos que eu já vivi. Mas minha consciência sabia que tudo poderia ter um desembocar diferente da lei que dita os bons finais de acordo com os bons começos.


Há a política do grito. Eu acredito ter um baixo tom de voz, talvez ele seja baixo apenas em relação as outras vozes da família.  Não consigo estabelecer diálogo algum quando alguém está gritando comigo. O grito impõe, não há conversa que se desenvolva em meio a uma gritaria, é simplesmente um ditar de ordens, uma demonstração clara de quem manda e de quem obedece. E eu, aqui dentro, sempre estou a obedecer.

Somos quatro, as filhas de Luisa. A mais velha dentre nós também não fala muito alto, ela não convive habitualmente conosco, pode ser uma razão. A verdade é que cercada em um mundo onde ser varão quer dizer ser o rei da selva, Luisa se viu obrigada a forjar mecanismos de defesa. Seria ela, pois, a leoa no meio disto tudo. Ela e os seus, no caso, as suas. Falar mais alto não é gritar, a gente se ilude. Me lembro com freqüência das  mulheres de Crumb. As mulheres da minha casa são grandes, como as das histórias em quadrinhos, são educadas e justas, pagam suas contas, têm as suas casas, impõem respeito. Na semana passada, mamãe na sua mania de satisfazer aos outros, estava irrequieta na mesa ao ver que o meu cunhado - o único, diga-se – não estava conseguindo se mexer muito bem, então pediu para que alguém o ajudasse. Ele foi logo se adiantando na resposta e soltou um: “A senhora, por um acaso, criou alguma de suas filhas para servir?”. Todos nós rimos. E ele se virou sozinho. Uma das minhas sobrinhas brinca com o cachorro batendo os pés no chão incessantemente, produzindo um barulho ensurdecedor. E Carolina, de apenas nove anos,  grita pra conseguir tudo o que quer.
 

Eu fiquei o sábado à noite em casa, como tem sido de costume. Aquela trilha no piano, em De Olhos Bem Fechados de Kubrick, me manteve acordada até às quatro e meia da manhã. Mas hoje, as onze, minha mãe me acordou aos berros. Eu no quarto e ela na sala. Lhe disse o quanto isto me incomodava, mas acho que Luisa ainda acredita que vai me evitar os sofrimentos, e tenta me ensinar algumas leis do vociferar. Em meio a tanto amor e também a tanta paciência, mamãe não sabe que eu ainda sou o outro ponto que impede de cairmos para um dos lados. Como os pesos diferentes de uma balança.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão.
Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa




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